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Guia mapeia experiência negra em SP pra falar de memória e direito à cidade

Adriana Terra

16/07/2018 11h30

Como discutir seriamente memória e direito à cidade em um território onde se deram (e ainda se dão) tantos apagamentos? Trazer à tona referências geográficas — históricas e contemporâneas — de pontos de cultura, imprensa e militância negras em São Paulo foi o caminho utilizado pelo coletivo Crônicas Urbanas, formado pela comunicadora social Fernanda Zanelli e pelos historiadores Fabio Dantas, Lilian Arantes e Fernando Mafra.

Arte: Crônicas Urbanas

Juntos, eles produziram o Guia dos Itinerários da Experiência Negra – Um Passeio Histórico por São Paulo, lançado no ano passado. Contemplado pelo edital Redes e Ruas, o projeto foi pensado para não se esgotar em uma publicação, tendo potencial para se desdobrar em roteiros, aulas, rodas de conversa. Principalmente, em material que possa ser levado para as escolas, ofertando um debate mais crítico sobre a cidade.

"O Guia nasceu dessa forma: como repensar os sujeitos dentro da cidade? Ou melhor, como pensar as cidades para os sujeitos?", conta Fabio. "A gente queria fazer um projeto sobre direito à cidade e o tema racial estava muito forte, especialmente em mim, porque eu estava passando pela fase de me entender como negra. Ao mesmo tempo, eu tinha muita vontade de voltar pro bairro onde nasci, o Jardim João XXIII [na zona oeste], para falar sobre juventude que é o meu tema de estudo", explica Fernanda.

Dessa forma, o projeto tem duas frentes que se conversam: o mapeamento de territórios negros históricos no centro de São Paulo e um diálogo com a juventude de hoje das periferias. Entender e pensar os fluxos entre passado e presente, centro e borda.

Fabio explica como se deu a escolha do território pesquisado. "Existe uma ideia que se for pra falar de São Paulo negra a gente tem de falar da periferia, como se a história negra de São Paulo sempre estivesse na periferia. Isso é um fato que existe, esse processo de expulsão da população negra do centro de São Paulo é um projeto político muito escamoteado: o aumento do preço de aluguéis, a falta de emprego acaba gerando isso. Mas o que a gente foi vendo na pesquisa é que a população negra se expandiu pela periferia, mas seu número absoluto nunca diminuiu no centro, pelo menos até 1930. E aí a gente falava: por que essa história de embranquecimento do centro não bate com os números?".

O período histórico que eles abordam também não foi eleito por acaso. "Foi uma escolha a gente olhar pra esse começo de urbanização", diz Fernanda.

Para auxiliar esse mapeamento, o coletivo recorreu aos jornais. "O projeto nasce da gente pensar as redações da imprensa negra no início do século 20, porque elas estavam sempre em bairros em que comunidades negras moravam, então nesse sentido o centro teve uma ebulição de propostas políticas mesmo, de resistência ao racismo, de resistência a situação econômica de São Paulo de negros", diz Fabio.

Localizados esses pontos históricos [veja aqui], a segunda parte do projeto visava traçar outros mapas: o dos coletivos que, hoje, discutem memória, direito à cidade e temática racial em uma periferia paulistana. E aí Fernanda voltou ao Jardim João XXIII, onde fizeram a ponte com juventudes que passaram a participar dos encontros do coletivo.

"A gente queria fazer um diálogo com os jovens negros sobretudo de hoje. Eles se enxergam em São Paulo? Como é ser jovem negro numa cidade que se queria branca? Toda a identidade dos bairros Bexiga, Liberdade, relacionada aos orientais, aos italianos, e a memória negra invisibilizada?", questiona ela.

Debate com jovens que participaram do projeto | Foto: Crônicas Urbanas

No roteiro de lançamento do projeto, que percorreu cerca de 3 km pela região central da cidade, Fabio conta que situar locais de memória negra — muitos prédios que foram demolidos, mas cuja ausência explicitada é importante enquanto conhecimento "de que ali existiu um processo de resistência" — ajudou os jovens a dar novo sentido para esses espaços. "Porque, como historiador, sei de uma memória negra em São Paulo, apesar de não a ver, mas como morador branco da cidade, percebo diferente essa ausência. Agora, os jovens diziam como não se viam em lugar nenhum. Andar a pé em SP era não se ver nos prédios", diz ele.

"Para mim, duas coisas foram muito fortes nesse processo: a descoberta, pelos jovens, de que a São Paulo negra sempre esteve ali, a 'tirada desse véu'; e uma coisa de ancestralidade que eles falaram: 'hoje a gente escreve em blog, milita no Facebook, e nossos ancestrais tinham a imprensa, os bailes"', conta Fernanda.

O Guia é composto de mapas e verbetes, além de frases de personagens da cidade. "A gente entrevistou a Beth Beli, fundadora do Ilú Obá de Min, o sambista Selito do Camisa Verde e Branco, uma pesquisadora que trabalha com imprensa negra que é a Ana Flávia Magalhães, o artista Jaime Lauriano. As aspas dessas entrevistas foram ilustrando questões de memória. Por exemplo, sobre a Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos se conta a história de que a primeira ficava onde hoje é a Bovespa, e ela foi transferida pro Largo do Paissandu porque os tambores incomodavam a região. E a Beth conta uma história de que o bloco Ilú Obá já mudou de sede várias vezes porque eles são expulsos, porque os tambores incomodavam. A gente colocou essa informação perto do verbete sobre a Igreja. Então o livro tem essa composição", explica Fernanda.

Comento com eles que o Guia me parece ser parte de uma leva de projetos recentes que vêm abordando a cidade de maneira mais crítica e complexa. "A gente tem sorte de fazer parte de uma geração em que a historiografia não está mais encastelada, como se ela produzisse o saber longe de todo mundo", diz Fabio.

"A gente tem de poder pensar que história oficial é essa que está sendo contada, e de que forma a gente coloca outras perspectivas nesse palco. Como a gente trabalha com memória que está em risco? Esse é o trabalho que o Guia faz", coloca Fernanda.

Como se trata de iniciativa financiada por edital, o Guia não é um produto vendável, mas pode ser consultado em partes no site do coletivo, que traz também os mapas que podem ser percorridos a pé: coletivocronicasurbanas.wordpress.com. Já na página do Facebook, dá pra acompanhar os próximos passos do projeto.

Sobre a autora

Adriana Terra é jornalista e gosta de escrever sobre a cidade e sobre cultura. É co-criadora da série “Pequenos Picos”, mapeamento afetivo de comércios de bairro da capital paulista, e mestranda em Estudos Culturais na EACH-USP, onde pesquisa lugares e modos de vida. Foi criada em Caieiras e há 15 anos vive no centro de São Paulo. Na zona noroeste ou na Bela Vista, sempre que dá, prefere ir caminhando.

Sobre o blog

Dicas de lugares, roteiros, curiosidades sobre bairros, entrevistas com personagens da cidade, um pouquinho de arquitetura e mais experiências em São Paulo do ponto de vista de quem caminha.

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