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Blog SP a Pé

A cidade e o medo que não pode existir

Adriana Terra

30/10/2018 11h07

Não é de hoje que a manipulação da ideia do medo existe na dinâmica das cidades e países, envolvendo principalmente o debate sobre segurança. Curioso como andar a pé, dentro desse cenário, parece um dos maiores absurdos, uma ideia de malucos, enquanto soluções simplistas e violentas propostas por alguns políticos, não.

Para estimular um olhar crítico sobre o assunto e dar energia para seguir em frente buscando cidades mais igualitárias, caminháveis, separei trecho de livro do italiano Francesco Careri sobre o qual falei em post da semana anterior, "Caminhar e Parar". Está presente nele o atentar ao medo, ao modo como ele afeta nossas vidas e gera reflexos.

Uma manhã, na Universidade Católica, aproxima-se de mim um rapaz. Apresenta-se: El Kike. É baixinho, magrela, de cabelos compridos e camisa branca. É o chileno que não acreditava mais encontrar. Parece saído de uma foto em branco e preto e tem muita vontade de falar. Seus pais estavam no mítico Movimiento de Izquierda Revolucionaria (MIR), mas me diz que dessas coisas nunca se falou muito antes, mesmo na casa dele, porque eram coisas de gente grande, verdadeiros segredos que podiam levar à tortura depois, porque não se pode lembrar todo dia os demasiados amigos mortos. Assim, não falamos disso; tudo foi intuído, mais do que explicado, e ia-se adiante carregando o luto dentro de si. Acima de tudo, El Kike contou-me haver realizado uma obra de arte urbana algumas noites antes, numa grande praça quadrada onde cada dia se instala o mercado. Entrou lá de noite, sem ninguém saber, no largo escuro e vazio, e desenhou a giz algumas linhas brancas, percursos que, partindo dos portões de entrada, atravessavam o espaço obliquamente. Na manhã seguinte, foi verificar e se viu diante de algo inesperado: as bancas do mercado não seguiam mais as direções costumeiras das fileiras paralelas, mas se haviam instalado segundo o seu desenho. Os vendedores protestavam entre si, não sabiam explicar quem pudesse ter dado uma ordem tão absurda, mas — de qualquer maneira — haviam obedecido sem mais, todos em posição de sentido diante da primeira manifestação de poder, do arquiteto ou, quem sabe, da polícia. Não sei se El Kike compreendeu até o fundo a obra que realizou. A mim pareceu uma fotografia importante da realidade de Santiago, da relação que existe aqui entre espaço público e controle do poder, da submissão muda e obediente dos cidadãos, ainda prontos, hoje em dia, a sofrer qualquer forma de abuso, mesmo o mais absurdo. Em um gesto, el Kike materializou o medo que ainda existe, mesmo se ninguém falar dele." (do texto Santiago de Chile – 2005-2012)

Pensando em outras leituras sobre o tema, e para que a gente sempre possa falar sobre todos os assuntos sem medo, separei uma pequena lista inspiradora:

-"Cidades rebeldes", de David Harvey
-"Cidades para pessoas", de Jan Gehl
-"Elogio aos Errantes", de Paola Berenstein Jacques
-"O centro da cidade do Salvador", de Milton Santos
-"Walkscapes, o caminhar como prática estética", de Francesco Careri

Sobre a autora

Adriana Terra é jornalista e gosta de escrever sobre a cidade e sobre cultura. É co-criadora da série “Pequenos Picos”, mapeamento afetivo de comércios de bairro da capital paulista, e mestranda em Estudos Culturais na EACH-USP, onde pesquisa lugares e modos de vida. Foi criada em Caieiras e há 15 anos vive no centro de São Paulo. Na zona noroeste ou na Bela Vista, sempre que dá, prefere ir caminhando.

Sobre o blog

Dicas de lugares, roteiros, curiosidades sobre bairros, entrevistas com personagens da cidade, um pouquinho de arquitetura e mais experiências em São Paulo do ponto de vista de quem caminha.

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