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Pensando uma cidade de encontros, projeto promove passeios a pé pelo Brasil

Adriana Terra

09/10/2019 11h08

Oficina Cultural Oswald de Andrade, parte do passeio que será feito na Luz | Karla Pinheiro / Creative Commons

Quando a produtora cultural Isabel Seixas fez um passeio guiado por Bangu, um dos bairros mais populosos do Rio, pouco sabia sobre a região. Era notória, para ela, a importância devido à sua localização, na entrada da cidade. Caminhando ao lado de pesquisadores, soube mais sobre a versão de que teria sido em Bangu a primeira partida de futebol do Brasil e sobre uma pioneira fábrica de tecidos. Também percebeu uma história oral fértil nas falas dos moradores, com trajetórias familiares que ajudam a entender como prédios, casas e condomínios foram se organizando ali.

Não é o tipo de informação amplamente difundido sobre o local. "Há lugares que têm um estigma tão forte que as pessoas só os reconhecem pelas páginas policiais, nas notícias de sangue. Para o morador, é a ideia de que seu bairro nunca é citado no caderno de cultura, e isso vai passando de geração em geração de forma que o resto da memória e o repertório do lugar vão sendo apagados", diz ela.

"Apesar de haver grande concentração de atividades, zona sul e centro não representam nem um terço da zona oeste. Foi nesse roteiro que várias pessoas andaram de trem pela primeira vez. E trem no Rio é super emblemático porque todo subúrbio é desenhado pela linha do trem, então não conhecer o trem é não conhecer o subúrbio", conta.

Mapa do roteiro de Bangu feito pelo Rolé Carioca

A percepção de que sabemos pouco sobre a cidade levou Isabel a agir já fazem alguns anos. Junto ao designer Diogo Rezende e a economista social Larissa Victorio, ela é fundadora do estúdio Mbaraká, responsável pelo Rolé Carioca, circuito de passeios a pé e canal de história urbana surgido em 2013 como um desdobramento dos roteiros realizados na exposição "A Voz do Povo – Memória do Rio em Ditos", que abordava curiosidades sobre lugares da capital fluminense.

No próximo dia 19, o projeto realiza passeio na região da Luz, em sua quinta edição em São Paulo, expandido agora como Rolé Brasil e já tendo passado por outras seis cidades. A iniciativa foi uma das oito vencedoras do 32º Prêmio Rodrigo Melo Franco de Andrade, do Iphan, em setembro, que premia ações de valorização dos bens culturais do país.

Nesse ou em outros dos quase 50 roteiros já realizados — como o de Bangu, mas também pela avenida Rio Branco, pelo Catete, por Paquetá ou Andaraí –, a ideia é ajudar a romper estereótipos, abordar a história de maneira questionadora e aberta, colaborar na diminuição de obstáculos culturais que impactam a circulação das pessoas, estimular novos fluxos e, em especial, facilitar encontros, conta Isabel.

"Há um tempo nos passeios dedicado ao olhar livre e aí você percebe pequenos grupos conversando. Acho que isso é um aproveitamento coletivo do espaço público cada vez mais raro", diz. Ela usa a expressão "cidade praticada" do historiador francês Michel de Certeau (1925-1986).

Uma coisa que a gente percebe é que esses roteiros quebram algumas barreiras invisíveis. Não é raro ouvirmos 'nunca vim neste lugar e sempre quis'. E a pessoa não tem um motivo claro — às vezes é por achar que não tinha roupa adequada ou que não iria entender. Enquanto a cidade deveria ser um lugar praticado, senão ela vira uma hipótese.

Os roteiros têm curadoria e pesquisa dos historiadores Rodrigo Rainha, professor adjunto da Universidade Estadual do Rio de Janeiro e coordenador da área de Educação da Universidade Estácio de Sá, e William Martins, pesquisador e doutor pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. "No Rio, a ideia todo ano é caminhar por pelo menos quatro áreas de planejamento da cidade — são cinco ao todo", conta Isabel.

Mesmo em locais notórios, os passeios buscam percorrer outros caminhos. "Às vezes a pessoa vai na Urca e fica no aglomerado da fila do Pão de Açúcar e não conhece nada além desse ponto, sendo que ali é uma região de formação da cidade", exemplifica a produtora.

Alguns dos roteiros feitos no Rio pelo projeto | Arte: Rolé Carioca

Para o próximo ano, o projeto vai lançar um canal no YouTube, roteiros para crianças em colaboração com a Casacadabra e um aplicativo, parceria com um edital da Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio de Janeiro (FAPERJ), que irá fornecer informações de regiões cartografadas pelo projeto quando o usuário passar por elas.

Às vezes tem alguém que fala 'não é bem assim', e isso é o máximo. A história como ciência obviamente tem suas metodologias, mas como uma ciência humana ela tem pontos de vista: alguém que viu aquilo por outro ângulo ou que não está preocupado com a grande história, mas com a história do bairro, por exemplo.

Ao viajar para outras cidades, são convidados pesquisadores locais para ajudar no diálogo durante os passeios. Em São Paulo, quem vai acompanhar o próximo roteiro é Deborah Neves, historiadora da Unidade de Preservação do Patrimônio Histórico da Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo. Serão visitados espaços como o Memorial da Resistência, a Pinacoteca, o Museu da Língua Portuguesa e o Parque da Luz. A ideia é pensar a cidade por meio do transporte, aproveitando o território caminhado para discutir temas como disputa de poder, memória, espaços verdes em uma cidade muito construída, imigração, descaso com equipamentos públicos, conta Beatriz Novelino, produtora executiva do projeto.

Os roteiros são gratuitos — o projeto é financiado via Lei de Incentivo Municipal e pela Lei de Incentivo Federal, para roteiros fora do Rio. Para participar do passeio em São Paulo é necessário apenas estar no ponto de encontro, a Estação da Luz, às 10h do próximo dia 19, um sábado (acompanhe aqui). Já para saber da agenda carioca, visite o site.

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Sobre a autora

Adriana Terra é jornalista e gosta de escrever sobre a cidade e sobre cultura. É co-criadora da série “Pequenos Picos”, mapeamento afetivo de comércios de bairro da capital paulista, e mestranda em Estudos Culturais na EACH-USP, onde pesquisa lugares e modos de vida. Foi criada em Caieiras e há 15 anos vive no centro de São Paulo. Na zona noroeste ou na Bela Vista, sempre que dá, prefere ir caminhando.

Sobre o blog

Dicas de lugares, roteiros, curiosidades sobre bairros, entrevistas com personagens da cidade, um pouquinho de arquitetura e mais experiências em São Paulo do ponto de vista de quem caminha.

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