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Grupo une pesquisa e vivência para debater história na rua

Adriana Terra

11/11/2019 14h22

Conversa após rolê no sábado (9/11/2019) | Foto: História da Disputa: Disputa da História

"Reparem nos corpos que estavam circulando lá em cima, reparem na circulação aqui embaixo, nas pessoas, no que elas estão fazendo", diz a historiadora Caróu Oliveira, enquanto se desloca em direção ao Glicério com um grupo que se encontrou na tarde do último sábado no metrô Liberdade para uma caminhada conversando sobre a cidade.

Caróu é parte do coletivo História da Disputa: Disputa da História, que nos últimos quatro anos vêm realizando debates itinerantes, como eles chamam rolês como o de sábado. "Nossa metodologia parte da nossa experiência sensível, e da experiência sensível das pessoas, para discutir a cidade", explica. "A gente começou mais conteudistas, e na discussão com as pessoas foi percebendo que a paisagem transforma também a memória, porque São Paulo não tem lastro de memória que não esteja ligado a arquitetura, e por vezes derrubam um prédio e depois de anos a gente não lembra mais do que estava ali, então você tem uma experiência de memória na sua vivência que conta a história da cidade, onde é possível fazer essa escavação. E foi na nossa experiência e na dos outros que a gente começou a desenvolver o debate itinerante, que é investigar a cidade a partir de referências historiográficas, levantamento iconográfico, estatístico, mas mobilizando como material para falar sobre território as memórias e experiências das pessoas", diz ela.

O primeiro rolê que o grupo fez, em 2016, foi influenciado pela vivência deles na região da Luz. "Nós trabalhávamos na Sala São Paulo, a gente fazia monitoria naquele edifício do século 20, luxuoso, nos Campos Elísios, e ali a gente retomava a história daquele bairro, um projeto do século 19, para chegar no presente. No entanto, saindo para almoçar ou no caminho de casa a gente percebia uma contradição muito grande entre aqueles projetos de São Paulo e o projeto recente de retomar o bairro como centro das artes, e o que de fato estava acontecendo na rua. Isso foi muito importante para pensar o espaço", conta o historiador Lucas Sanches.

"E a gente escolheu a Luz por causa da disputa da cracolândia, a disputa de território que está lá agora, então a gente foi para um roteiro histórico, mas partindo de uma observação de hoje", explica Caróu. "Nossa ideia é sempre trazer a discussão acerca das narrativas que a historiografia consagrou sobre a cidade, mas a fim de tentar entender as mudanças de atualmente", completa Victor Oliveira, também historiador.

Outra inspiração para os rolês foi o trabalho da jornalista Sabrina Duran com o Arquitetura da Gentrificação, investigação sobre as relações entre poder público e empresas privadas do setor de construção civil e do ramo imobiliário no centro de São Paulo entre 2005 e 2012, abordando as medidas higienistas das administrações municipais no período.

No debate itinerante do último sábado, a pergunta que chamava para o evento era "como falar de um patrimônio que não existe?". "Tem um monte de coisas que a gente consegue ver, mas tem coisas que aconteceram e a gente não consegue ver. Os escravizados e escravizadas não deixaram patrimônio, então como ficou a presença deles no território para discuti-la? Como observar a cidade como um arquivo?", questiona Caróu.

O rolê parte do Largo da Forca, hoje Praça da Liberdade, local de enforcamentos no século 19 — a história do soldado negro Chaguinhas é a mais notória –, e termina na Igreja da Boa Morte, na Sé, construção com mais de 200 anos onde os condenados faziam sua última oração. Nas três horas de trajeto, a arquitetura se faz presente, mas o convite é para pensar na relação dela com as pessoas e nas sociabilidades que se dão nos espaços. Na relação entre esses locais de punição de tempos atrás, por exemplo, e a presença hoje do 1º Distrito Policial na rua da Glória. Como entender a atualidade a partir de "um contínuo histórico", coloca Victor.

Já entrando na região do Glicério, Caróu atenta. "A gente está a poucos metros da praça, mas olha como a paisagem muda", diz ela, ao som de um rap nacional que vem de um carro estacionado. Enquanto nosso grupo conversa em uma esquina, da varanda de uma casa um homem observa. Caróu fala sobre como nossa presença chama a atenção. "É uma parte da proposta estimular essas percepções que as pessoas têm da rua. E acho que tem uma coisa que é uma crítica ao modelo turístico que muitas vezes é um grupo em uma bolha, então a ideia é que as pessoas afetem e sejam afetadas mesmo", diz Victor.

"O tempo todo acontecem aventuras nos nossos rolês e elas fazem parte deles: então tem os moradores de rua, às vezes a gente não consegue passar pelos lugares. Teve uma vez na [avenida] Paulista que estava tendo rolezinho na [rua] Augusta e a gente não conseguiu atravessar. A gente estava discutindo apropriação da Paulista por outros grupos que não eram os grandes bancos, então a experiência estava acontecendo no corpo, e às vezes acontecer no nível sensível do corpo faz mais sentido do que no nível discursivo", diz Caróu.

"Existe uma estratégia de desmerecimento desse tipo de relação [mais subjetiva], e reforça-se essa ideia de que o relacionamento para além do prático na cidade é ou de desejo ou de consumo", diz Victor. "E esvazia-se percepções que por vezes são as únicas apropriações da cidade que alguns grupos têm", completa a historiadora. 

"A gente tenta pensar em percursos e propostas um pouco incômodos, para ninguém ficar confortável no lugar. Passar por becos e vielas, por lugares sujos, escuros e feios, porque as pessoas não passam por eles e nem sabem que eles existem no centro", fala Caróu. Metros abaixo, em frente à Igreja de Nossa Senhora da Paz, que realiza um trabalho com refugiados, o grupo que estamos vai destoando mais: cor da pele da maioria (branca), jeito de se vestir, comportamento (parar para conversar em coletivo). Impossível não pensar nisso tudo.

No percurso "de cima da colina onde foi fundada a cidade de São Paulo" em direção à Baixada do Glicério, passamos pela casa onde nasceu escola de samba mais antiga de São Paulo, a Lavapés (abaixo, registro de ensaio de 2017), fundada por uma mulher negra, Madrinha Eunice, e que ainda ensaia nas ruas do bairro. Não há, no entanto, placa nem fachada histórica (lembrando Geraldo Filme em sua composição sobre Pato N'água, lendário mestre de bateria do Vai-Vai assassinado pelo esquadrão da morte em 1967, "não tem placa de bronze, não fica na história") — o grupo sabe da informação por meio de uma conversa que teve com a atual presidenta da agremiação, Rosemeire Marcondes, neta da fundadora.

O debate também passa por uma ausência que se faz bastante presente em São Paulo: os rios. Estamos caminhando em direção à várzea do Tamanduateí. Do alto, na região da praça, era onde se tinha a vista, bem como os espaços de tortura e os casarões. De baixo, a várzea, as lavadeiras, populações pobres. O que temos hoje?

Terminado o percurso, retorna a questão sobre patrimônio. Ao escrever esse texto, fiquei rememorando o caminho, que mesmo circulando por ali diversas vezes nunca fiz igual. Lembrei das cores do prédio da EMEF Duque de Caxias, lembrei da academia na sobreloja de uma galeria comercial na Baixada, lembrei dos cartazes de shows de artistas de forró e sertanejo, lembrei da pichação de orgulho do Glicério cortando a Radial, lembrei do barulho do peixe empanado fritando e da cor das bananas da terra cortadas no carrinho de um ambulante provavelmente haitiano em frente à Igreja da Paz…

"Uma coisa que a gente foi percebendo é que se você experiencia a cidade, se você está na rua e presta atenção nela, vai ver que quem está fazendo ela acontecer não são os personagens hegemônicos que estão nos livros. O rito da gente trazer isso pro debate é tentar entender como esses personagens se apresentam desde a fundação da cidade pelos europeus, e desde as populações nativas que conviveram com eles desde o primeiro momento, e de como isso é um contínuo", diz Victor.

"Isso nos leva a pensar essa perspectiva da história a partir de baixo, porque a história sistematizada, que o Mercadão conta a partir da sua arquitetura, é de cima para baixo, do projeto arquitetônico, urbanístico. Mas quem subiu as pedras, quem limpa, planta as verduras, não está nessa história. Então onde a gente consegue achar, escavar os documentos, as presenças de quem 'foi vencido', como [o filósofo alemão Walter] Benjamin diz. E aí a gente volta pra coisa da experiência. Ao confrontar a experiência e a memória das pessoas com a arquitetura, a historiografia oficial, a gente vai encontrando essas contradições das quais é feita a cidade. Algumas coisas convergem, outras divergem, e a partir daí a gente vai trabalhando", conta Caróu.

Quem escreveu, quando escreveu, não existe verdade oficial, não existiu versão única da história, não pode haver uma memória só da cidade, porque ela é totalmente plural, misturada e caótica. Então o fato de ser um debate itinerante é justamente para que possa haver discordância – Caróu Oliveira

"A gente diverge inclusive entre a gente, porque história é isso. E a gente foi virando a História da Disputa: Disputa da História porque a gente quer historicizar a história da cidade, que é uma história de disputa, e disputar a história que se conta, fazendo isso no nosso ofício", diz Caróu.

Tanto abrir espaço para divergências quanto levar em conta informações muito difundidas, porém com erros, é parte do processo. "As informações historicamente erradas são tão importantes de serem debatidas quanto o referendado pela historiografia, porque elas vêm de algum lugar e servem a algum propósito. Então faz-se a crítica — e como a história da cidade tem um espectro afetivo, as pessoas têm uma série de motivos pessoais para concordar ou discordar de coisas estabelecidas como fatos —, mas essas informações são igualmente importantes de serem discutidas se a gente quiser debater de forma ativa", diz Victor.

Nos quatro últimos anos, o grupo fez curadoria para o Memorial da Resistência sobre as margens do rio Tamanduateí, uma residência no mesmo local acerca de espaços de repressão e resistência, conversas no CCSP envolvendo moda, e agora realiza uma série de debates itinerantes dentro da programação paralela à exposição Meta Arquivo, no Sesc Belenzinho, após encontros discutindo a própria ideia de arquivo. Para quem se interessou, o próximo é no dia 16 de novembro com o tema "Como observar no tecido urbano memórias que não foram arquivadas?" (mais informações aqui).

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Sobre a autora

Adriana Terra é jornalista e gosta de escrever sobre a cidade e sobre cultura. É co-criadora da série “Pequenos Picos”, mapeamento afetivo de comércios de bairro da capital paulista, e mestranda em Estudos Culturais na EACH-USP, onde pesquisa lugares e modos de vida. Foi criada em Caieiras e há 15 anos vive no centro de São Paulo. Na zona noroeste ou na Bela Vista, sempre que dá, prefere ir caminhando.

Sobre o blog

Dicas de lugares, roteiros, curiosidades sobre bairros, entrevistas com personagens da cidade, um pouquinho de arquitetura e mais experiências em São Paulo do ponto de vista de quem caminha.

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