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De oeste a leste, o que uma travessia por SP ensina sobre a cidade

Adriana Terra

21/05/2018 09h38

Já pensou em atravessar uma cidade como São Paulo a pé? Passar dois dias inteiros tendo o percurso (com suas descobertas e percepções), e não a chegada, como motivação? Em julho de 2016, um grupo que vive na capital paulista se propôs a uma caminhada que partiu do Ceagesp e terminou em Guaianazes, cruzando extremidades de oeste a leste.

"A travessia foi um deslocamento de forma a criar uma linha do começo ao fim da cidade. É muito incrível você atravessar São Paulo assim, muda demais a paisagem. E passar o dia inteiro andando é uma coisa muito louca. Não rola um cansaço extremo, o que cansa é andar rápido", diz a artista baiana Vânia Medeiros, que mora na capital paulista desde 2008, em uma conversa durante um almoço no bairro da Barra Funda.

"Eu tô lendo esse livro 'Lines', de Tim Ingold, um antropólogo [britânico], e ele vai fazer o que ele chama de antropologia da linha. Que ele diz que nossa era é a era dos pontos, você pega um avião ou carro e vai de um ponto a outro, não pensa o percurso; a escrita é digitada. E que antes tudo era feito a partir de linhas, seja a escrita manual ou o desenho, o caminhar. E ele pensa como essa linha tem uma coisa construtiva", conta ela. "Dizem que a arquitetura surgiu a partir de você começar a pegar linhas, fios, galhos que foram sendo retorcidos e gerando vestimenta, arquitetura. E nesse andar em linha você sente muito isso, a ideia de que construiu alguma coisa".

Histórias que são feitas a pé

Vânia é uma das integrantes do Coletivo Teatro Dodecafônico. Surgido em 2007, ele reúne pessoas de áreas diversas que se conectam, dentre outras coisas, pelo olhar sensível que têm para a cidade. "Cada pessoa do coletivo tem sua pesquisa de deriva dentro do seu campo: a Olivia [Niculitcheff] é muito da dança, a Sandra [Ximenez] é mais da música. Mas a pesquisa de uma sempre contamina a de todas. Eu sou mais da investigação da narrativa mesmo, de registrar e transformar isso numa narrativa urbana, que é um termo de Paola Berenstein Jacques [arquiteta e urbanista brasileira]".

A artista me conta que as ações do grupo, como essa caminhada, geram sempre publicações. "As escritas são fundamentais, escrever logo depois da experiência, não deixar aquela sensação morrer. Porque as narrativas que temos são da hegemonia, da urbanização, mas a partir do momento em que você escreve das suas caminhadas, da sua vivência corpo a corpo, isso também é história".

Vânia cita percursos notórios que inspiraram o coletivo, como os feitos pelo grupo italiano Stalker e por artistas como Marina Abramovic, o belga Francis Alÿs e o norte-americano William Pope L..

No projeto que se chamou Travessia Oeste-Leste, o Dodecafônico seguiu um mapa — alterado apenas uma vez por conta de uma região complicada para se caminhar — e as atividades envolviam andar, descansar, desenhar, conversar, comer e fazer pausas. "Por exemplo, a gente chegou na USP, no local das capivaras, e eu quis que todo mundo parasse pra desenhar. Chegou na zona leste num desses entroncamentos, numa dessas ilhas em meio a cruzamentos, e fizemos o mesmo", conta Vânia.

Pergunto para ela o que de mais bonito descobriu sobre a cidade, ou qual lugar de São Paulo chamou sua atenção. Difícil me desprender da ideia de pontos, mas logo sou trazida de volta aos caminhos. "Tiveram momentos super especiais: andar à noite no Glicério. Foi um momento muito forte atravessar a ponte que vai dar na Mooca. Um grupo com maioria de mulheres, andando num lugar degradado urbanisticamente. E, para nossa surpresa, encontramos muitas mulheres com filhos vivendo de forma familiar em suas barracas. Outro momento de noite foi em Guaianazes, já no final, aquelas passagens de pedestre bem fininhas, largadas. O caminho do pedestre não é valorizado. Uma coisa bem anti-paisagem, pra você não ir. A cidade é maltratada, não é pra você andar. Mas essas travessias geram outra relação, você vê a cidade, e começa a desenvolver até um carinho. Descobrimos lugares lindos, tem um cemitério na zona leste lindo em que fomos, um lugar de natureza, o cemitério de Vila Formosa". 

Nos dois dias de caminhada, o grupo parou para dormir em um hostel na Mooca. A artista conta que há uma publicação sendo feita sobre isso, além do plano de caminhar, agora, de norte a sul da cidade. "É muito louca a sensação ao fim, uma sensação de que você abarcou um território inteiro com seu próprio corpo", diz ela. "Já no final do percurso, na segunda noite, a lua estava cheia e magnífica no céu. Olhamos e uivamos juntos pra ela…".

[Todas as imagens são cortesia do Teatro Dodecafônico para o blog]

Quer ler mais sobre percursos urbanos?  

"Walkscapes – o caminhar como prática estética" – Livro de Francesco Careri.

"Elogio aos Errantes" – Livro de Paola Berenstein Jacques.

"Elástico – O que te faz andar? O que te faz parar?" – Livro resultado de um outro projeto do Dodecafônico.

"Cidade Passo. Conversações entre arte, design e etnografia" – Dissertação de mestrado de Vânia Medeiros.

"Percorrer a cidade a pé: ações teatrais e performativas no contexto urbano" – Tese de doutorado de Verônica Veloso, integrante do Dodecafônico.

 

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Sobre a autora

Adriana Terra é jornalista e gosta de escrever sobre a cidade e sobre cultura. É co-criadora da série “Pequenos Picos”, mapeamento afetivo de comércios de bairro da capital paulista, e mestranda em Estudos Culturais na EACH-USP, onde pesquisa lugares e modos de vida. Foi criada em Caieiras e há 15 anos vive no centro de São Paulo. Na zona noroeste ou na Bela Vista, sempre que dá, prefere ir caminhando.

Sobre o blog

Dicas de lugares, roteiros, curiosidades sobre bairros, entrevistas com personagens da cidade, um pouquinho de arquitetura e mais experiências em São Paulo do ponto de vista de quem caminha.

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