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Combinando real e fantástico, guia propõe exercício de imaginação sobre SP

Adriana Terra

06/07/2018 10h36

"Nas suas margens, na colina que o separava do córrego Anhangabaú, foi fundada a cidade de São Paulo. E, graças à sua magnífica rede fluvial, é possível passear, nadar e pescar nas mesmas águas onde navegavam e pescavam os primeiros moradores de São Paulo."

A espanhola Ángela León nasceu em Mallorca, onde sua família passava as férias, e cresceu em Madri. O Brasil, até então, estava distante geograficamente, mas não do imaginário: sua mãe e tias haviam vivido no país porque os avós de Ángela vieram para a capital paulista na década de 50. "Depois, com o golpe, voltaram para Espanha, mas sua época brasileira virou parte da mitologia familiar. Por isso eu tinha uma relação especial com o Brasil e com São Paulo já antes de tê-los visitado", conta ela.

Foi durante a universidade que Ángela estreitou essa relação. Quando concluía o curso de design industrial, veio ao país pela primeira vez. Dois anos depois, voltou com o namorado para cá com "muito tempo livre e pouco dinheiro", a fim de estudar português e conhecer o Brasil. Foi nesse período que ela começou a desenhar São Paulo, onde se fixaram, e a criar os primeiros esboços do que se tornaria o Guia.

Lançado em 2015 com apoio editorial da Lote 42 (e com uma edição independente prévia), o livro fala de uma São Paulo entre o cotidiano e o fantástico. Explora uma fresta poderosa, seja ao mostrar que esse fantástico não é (ou poderia não ser) assim tão distante — lembrando, por exemplo, dos rios ou da ideia original de projetos idealizados por arquitetos –, seja ao mostrar como o cotidiano também é permeado de fantasia — como ao ressaltar a poesia da narração do caminhão do abacaxi, ao classificar de "monumento às frutas" o modo de organizar bananas e melões nas barracas e lanchonetes de esquina, ou mesmo ao chamar a atenção para as "sacadas tropicais", varandinhas cheias de plantas que surgem como miragens no alto de grandes prédios do centro da cidade. Tem crítica, assim como tem sonho e afeto também.

Da Itália, onde está morando agora, Ángela me respondeu algumas perguntas sobre o livro, que infelizmente está esgotado via Banca Tatuí — mas dá para acompanhar novidades e saber mais por esta página e pelo site da artista.

Crédito: Arte de Ángela León | Guia Fantástico de São Paulo

Ángela, queria saber um pouquinho da sua história: onde você nasceu e foi criada, qual a sua formação, como veio morar em São Paulo e qual foi sua primeira impressão da cidade? E como essa relação foi se configurando…
Eu nasci em Mallorca, mas só porque minha família passava o verão lá. Sempre morei em Madri.

Comecei estudar história da arte, mas não terminei, e me inscrevi em design industrial. Durante o último curso fiz minha primeira viagem para o Brasil. Dois anos depois, me mudei junto com meu namorado para São Paulo, onde ficamos quatro anos. Fomos sem um plano, somente com a ideia de morar lá um tempo, conhecer o Brasil, aprender português… meu namorado conhecia algumas pessoas porque já tinha feito um projeto artístico em São Paulo, mas no começo tivemos muito tempo livre e pouco dinheiro. Entre outras coisas, por isso comecei desenhar o Guia. Por isso e porque queria conhecer a cidade e foi minha maneira de entendê-la. Foi difícil alugar casa sendo estrangeiros sem trabalho, então fomos morar numa república na Vila Mariana, e depois em um apartamento na Santa Cecília, onde ficamos até voltar para a Europa.

Meus avós emigraram para São Paulo na década de 50 e minha mãe e tias cresceram lá. Depois, com o golpe, voltaram para Espanha, mas sua época brasileira virou parte da mitologia familiar. Por isso eu tinha uma relação especial com o Brasil e com São Paulo já antes de tê-los visitado. Eles passaram seus anos mais felizes lá e comparavam o Brasil desses anos com a Espanha cinza e atrasada da ditadura.

Cresci ouvindo música brasileira e esse é um dos pilares mais fortes do meu amor pelo Brasil, a música. A imagem idealizada que tinha antes de ir morar mudou bastante quando nos instalamos em São Paulo. Não somente pelo tamanho da cidade, pelas diferenças em relação ao que eu conhecia, mas principalmente pelo choque entre a ideia romântica familiar e a realidade. Mas acho que até agora esse conflito entre meu amor pelo Brasil e a dura realidade é o que define minha relação com São Paulo. Talvez o Guia reflita um pouco isso.

O Guia mistura elementos reais, como ao evidenciar a arquitetura dos espaços domésticos em vez de prédios monumentais, com elementos fantásticos que refletem sobre a urbanização da cidade e potências suprimidas, como ao falar dos rios subterrâneos, de outros usos dos espaços públicos, do não cumprimento de ideias de arquitetos, de discursos por trás de projetos controversos. Como você chegou nesse formato, que me parece ter um lado propositivo, sonhador, mas crítico também? E como foi feita a pesquisa?
Cheguei no formato antes de morar em São Paulo, quando estávamos planejando nossa mudança e nos perguntávamos por que íamos morar lá. Antes de ir morar em 2011, tínhamos passado um mês em São Paulo em 2009. Alugamos um quarto na avenida São João com a avenida Duque de Caxias. Nessa viagem, e também quando morávamos lá, nos perguntavam porque tínhamos escolhido São Paulo. Ninguém parecia entender nosso interesse pela cidade. E eu às vezes também não entendia porque insistíamos em gostar dela.

Acho que essas duas visões, a romântica, sonhadora, convive com a parte crítica porque é minha maneira de enxergar as coisas. Sou bastante crítica, mas acho que por isso tenho que compensar com uma atitude propositiva, porque senão seria triste demais. O formato de falso guia me pareceu bom para estruturar minha aprendizagem da cidade e para tirar a importância do assunto, para brincar com o imaginário.

Não sei se o processo de trabalho com o Guia pode se chamar pesquisa. Foi tudo muito orgânico, comecei a desenhar quando cheguei na cidade e acabei o livro quando ia embora. Ele reflete o que eu aprendi, o que me interessou… tive outros interesses também, mas no livro representei o que eu sabia desenhar e as coisas para as que eu tinha uma proposta. Por isso, pra mim é uma espécie de caderno de viagem, porque conta um pouco minha experiência lá.

Piscina no Minhocão; projeto semelhante foi levado a cabo em 2014 pela arquiteta Luana Geiger

Ao folhear o livro novamente para falar com você, fiquei pensando que essa combinação de real e fantástico é muito poderosa para enxergar essas coisas não tão distantes umas das outras. É por aí?
Que bom que você acha poderosa a combinação real-fantástico. Eu penso que é muito bom visualizar alternativas positivas, é verdade que isso encurta a distância entre o que é e o que poderia ser, é um bom exercício de imaginação.

Gosto muito da parte da cidade social, em que é retratado o modo de comerciantes venderem os produtos, como no caso do caminhão do abacaxi. Qual o peso do fator humano no Guia?
Bom, acho que o guia tem um caráter humanista e hedonista, no sentido de que tudo o que aparece no livro são maneiras de fazer as pessoas desfrutarem de São Paulo, segundo meu critério, claro. Pra mim, também porque isso não existe na Europa, ver um caminhão com uma montanha de abacaxis no centro da cidade é uma beleza, por exemplo. Ou valorizar a figura dos catadores, que são verdadeiros heróis desprezados pela sociedade…

Esse blog parte muito de refletir sobre a cidade do ponto de vista do pedestre. O que significa, pra você, andar a pé em São Paulo? Qual a caminhada mais inspiradora que já fez, uma travessia que você gosta de fazer em São Paulo ou uma parte da cidade por onde gosta de andar?
Eu não sei dirigir, então minha experiência de São Paulo sempre foi de pedestre. Morei no centro e além de caminhar muito usei transporte público. Acho que, em geral, caminhar pelas cidades te dá uma perspectiva e um conhecimento da rua muito pormenorizado. É uma experiência muito mais rica, porque você sente fisicamente a rua, nos teus pés, no nariz, no ouvido, na pele… Caminhar em São Paulo é intenso e, pensando nisso, o primeiro que me lembro é o cansaço de percorrer distâncias muito grandes, ruas muito íngremes com calçadas muito irregulares. Meu namorado tropeçava muito e falava que em São Paulo tem que caminhar com tração paulista, ou seja, elevando mais os pés por causa das calçadas. Esse detalhe parece pequeno, mas eu acho ele muito simbólico porque a falta de uniformidade nas calçadas e o fato de que cada um cuida da sua porção de calçada é consequência de uma gestão que valoriza o particular sobre o público. Eu acho que o Estado não se responsabiliza pela experiência do pedestre. Também nos chamava a atenção que os motoristas não respeitassem as faixas de pedestre, mas depois fomos morar na Itália e tudo virou mais relativo… (os italianos não têm muita paciência dirigindo).

Acho que o passeio mais especial pra mim foi o primeiro que fiz no Minhocão. A perspectiva da cidade que você tem caminhando ali tem algo de teatral. Você passa muito perto de algumas casas e dá para ver os interiores, mas também tem umas panorâmicas lindas. Parece um pouco o 'Janela Indiscreta', do Hitchcock. E eu não conheço outras cidades onde você possa caminhar por uma estrada no centro da cidade.

Há planos de outra edição? O que você gostaria de evidenciar pensando um livro novo sobre a cidade?
Eu gostaria de fazer uma nova edição do Guia, sim… Não sei se poderia fazer outro livro sobre a cidade, mas nos últimos dois anos tenho morado em Milão e penso que tem muitas coisas em comum com São Paulo. Acho engraçado comparar duas cidades que aparentemente não tem nada a ver. Também porque, eu pelo menos, quando chego numa cidade sempre a comparo com outras e ao final uma nova cidade me faz pensar em outras que já conhecia e talvez reparar em coisas que não tinha reparado.

Quer saber mais? Fique de olho na página do projeto, recentemente Ángela esteve em São Paulo e participou de atividades relacionadas a ele: facebook.com/guiafantasticodesaopaulo

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Sobre a autora

Adriana Terra é jornalista e gosta de escrever sobre a cidade e sobre cultura. É co-criadora da série “Pequenos Picos”, mapeamento afetivo de comércios de bairro da capital paulista, e mestranda em Estudos Culturais na EACH-USP, onde pesquisa lugares e modos de vida. Foi criada em Caieiras e há 15 anos vive no centro de São Paulo. Na zona noroeste ou na Bela Vista, sempre que dá, prefere ir caminhando.

Sobre o blog

Dicas de lugares, roteiros, curiosidades sobre bairros, entrevistas com personagens da cidade, um pouquinho de arquitetura e mais experiências em São Paulo do ponto de vista de quem caminha.

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