Cuadernos de Medellín: a cidade como um campo mágico de conhecimento
Adriana Terra
15/10/2018 14h45
Runas com oráculos sobre a cidade. Foto: Vânia Medeiros
"Acredito totalmente na história do que se vive pelo corpo. Meu trabalho hoje gira em torno de formas de criar espaços de partilha e criação destas histórias. Acho isso de grande valor político", diz Vânia Medeiros, artista baiana residente em São Paulo.
Graduada em comunicação pela Universidade Federal da Bahia, com mestrado em arquitetura pela FAU-USP, Vânia tem um trabalho ligado a investigação espaço urbano e das narrativas gráficas, valendo-se de cartografias, entrevistas. Ela brinca, por vezes, que faz "arteperiodismo", já que as perguntas são muito importantes em seu trabalho.
Residência Platohedro. Foto: Vânia Medeiros
Tendo como guia a percepção da cidade como um campo de possibilidades e de conhecimento, a artista passou o último mês de agosto em uma residência artística na cidade colombiana de Medellín, que visitou pela primeira vez. Como resultado, desenvolveu a publicação "Cuadernos de Medellín", sobre a qual irá falar nesta quarta-feira (17) no Fotolab Linaibah, no centro de São Paulo.
A publicação reúne criações feitas a partir de atividades propostas por Vânia durante sua temporada na cidade. A primeira delas resultou em uma nuvem de palavras formada a partir das respostas a três perguntas: "Como sua mãe te descreveria?", "Qual o lado ruim de ser mulher e andar pelas ruas de Medellín?" e "Qual o lado bom de ser mulher e andar pelas ruas de Medellín?".
A segunda consistiu em derivas pela cidade, que deram origem a desenhos e escritos. Em uma dessas caminhadas, a ideia era observar mulheres na rua, imaginando suas vidas. Em outra, escolher uma linha da mão para transpor para um trajeto na cidade, desenhando ao longo do percurso formas femininas (segundo a visão de cada participante). Na última, o objetivo era transformar o desenho de um percurso caminhado, as linhas urbanas, em um oráculo.
A publicação "Cuadernos de Medellín". Foto: Vânia Medeiros
Por fim, uma troca sensível de correspondências de Vânia com a curadora e pesquisadora brasileira Maria Catarina Duncan, que também viajava para um lugar pela primeira vez no período (a Amazônia), completa a publicação, como que documentando percepções em trânsito. "Há muito o que desaprender", diz Catarina.
Vânia me respondeu algumas perguntas que ficaram na cabeça após ler a publicação, falando sobre o caráter educativo e também mágico das cidades (ideias nas quais o blog tanto acredita), sobre a questão da mulher no espaço urbano e sobre a importância de escrever sobre nossas vivências. Ela ainda indicou uma vigorosa salsa colombiana, do grupo caleño Niche, para ouvir durante a leitura. Boa viagem.
O quanto sua experiência pessoal com a cidade de Medellín guiou esse trabalho? Vi algo muito bonito de descoberta, troca e encontro na publicação…
O que me levou à cidade e guiou o trabalho inicialmente foi uma grande curiosidade em conhecer Medellín. A Colômbia sempre me interessou muito cultural e musicalmente, e a história de Medellín me parece muito forte especialmente, por seu passado de extrema violência e ao mesmo tempo riqueza e resistência. Comecei o processo com longas caminhadas, à deriva. A maioria das vezes sozinha, outras com minha companheira residente Isabelle Arvers, uma grande caminhante também. A residência Platohedro fica bem perto do centro comercial, então tem uma enorme quantidade de gente na rua, é bastante ruidoso e movimentado, comerciantes, trabalhadores comuns, ambulantes, então foi bom sentir os hábitos cotidianos urbanos ali, bastante intensamente. Foi dessa vivência inicial que fui eu mesma escrevendo, desenhando, fotografando e elaborando propostas para partilhar com as participantes do processo, que só começou uma semana depois de minha chegada. Tinha muita ansiedade em encontrá-las e ver se elas se interessariam pelo que eu estava propondo. No primeiro encontro já senti uma conexão forte com todas e vi que nos constituiríamos em um grupo de trabalho bastante interessante e gostoso.
A cidade de Medellín em foto de Vânia Medeiros.
Quem são as mulheres que participaram? Eram todas da residência artística?
São mulheres que se inscreveram através de uma convocatória aberta no site da residência. Não fazia a menor ideia de quem ia se interessar, ou se alguém ia se interessar. Apareceram mulheres de áreas diversas, musicista, videasta, designer, jornalista… Um encontro muito múltiplo, não havia nenhum pré-requisito. Desenhar é algo que muita gente acha que exigiria alguma aptidão, mas nos meus processos é absolutamente o contrário, me interessa desenhos de quem não desenha, não virtuosos. Uma coisa importante do processo também foi me comunicar constantemente com a curadora e pesquisadora Catarina Duncan, a quem fui partilhando as vivências e ela me fazendo perguntas por email. A comunicação com ela possibilitou um processo de reflexão constante no processo, não apenas no final.
Por que você considera importante registrar experiências de caminhadas na cidade?
Porque tenho interesse total, quase obsessão pelas histórias do cotidiano, do dia a dia, fora das narrativas grandiloquentes, heróicas, arquitetônicas, projetuais. A história dos "praticantes ordinários", em seu "corpo a corpo amoroso com a cidade", expressões de Michel de Certeau [historiador francês]. A cidade tática, que é diferente da cidade estratégica. A cidade dos desvios para um café com alguém encontrado na rua, das brechas, das interrupções, dos tropeços. São narrativas que se perdem no tempo e quase nunca são registradas. As cidades vêm ficando cada vez mais agressivas e menos abertas aos atalhos… Especialmente as latinoamericanas, minha grande paixão.
Eu tenho muita inveja de "Boyhood", do cineasta Richard Linklater, que conseguiu fazer um filme sobre nada, sobre a vida de pessoas normais, uma família absolutamente comum, o que eles conversam no café da manhã, no carro indo para a escola, durante 12 anos. Eu queria fazer algo assim, longo e absolutamente cotidiano, não heróico, banal. Em espaços de rua mesmo. Acho também que criar livros a partir desse tipo de narrativas é importante porque implementa bibliografia, ocupa bibliotecas, pode influenciar textos de outras pessoas.
O livro tem muito "status" como fonte de conhecimento e acho que é preciso infiltrar textos de pessoas "comuns", não necessariamente intelectuais, nas bibliotecas.
O fato de o projeto ter envolvido só mulheres trouxe outras percepções? Quais?
Trouxe porque é nítido que ser um corpo de mulher em uma cidade latinoamericana é bastante diferente que ser o corpo de um homem. Isso é bastante forte mesmo em Medellín. É como Salvador, minha cidade. As duas cidades se parecem muito no sentido do "acoso sexual callejero" e o "machismo de la vieja escuela". Você ouve coisas de homens na rua o tempo inteiro. Toda hora. Olhares que podem ser bastante agressivos. É um misto de enorme amabilidade geral, uma rua cheia de vida, muito cheiro de comida, muita fruta colorida nos carrinhos dos ambulantes, um sol que brilha, música o tempo inteiro e essa ameaça velada à sua integridade física como mulher que é muito sub-reptícia, é naturalizada, tem ares de brincadeira, mas é extremamente violenta. Um homem não pode fazer nenhuma ideia do que é isso.
Outra coisa que foi central na residência e no processo de criação coletivo foi a criação do oráculo das runas, no qual transformamos o que foi visto/vivido nas derivas em símbolos associados a textos premonitórios, oraculares. "Se Medellín fosse um oráculo, que previsões ele poderia oferecer a quem caminha por suas ruas?". Essa ação gerou muitas narrativas pessoais íntimas, uma vez que realmente utilizamos aquilo como um oráculo, jogávamos umas para as outras. Histórias pessoais vindo à tona a partir dos símbolos da cidade. Chamei isso de "urbanismo psicomágico". Foi mágico mesmo! Esse tipo de partilha no qual o íntimo e o coletivo tem um trânsito intenso, que é muito ligada ao feminino.
Qual é a importância de se pensar a cidade e as experiências urbanas de maneira sensível, dado o momento político bruto em que estamos?
A grande narrativa das cidades é a da arquitetura e do urbanismo, ou seja, das construções, dos projetos de poder. Acredito totalmente na história do que se vive pelo corpo mesmo. Meu trabalho hoje gira em torno de formas de criar espaços de partilha e criação destas histórias, através do desenho, do texto, por enquanto, mas esses formatos estão ai para serem desdobrados. Acho isso de grande valor político, porque é vivido de fato pelas pessoas. São as horas, os minutos que se vive no espaço. Política tem que ser feita pensando nisso.
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Sobre a autora
Adriana Terra é jornalista e gosta de escrever sobre a cidade e sobre cultura. É co-criadora da série “Pequenos Picos”, mapeamento afetivo de comércios de bairro da capital paulista, e mestranda em Estudos Culturais na EACH-USP, onde pesquisa lugares e modos de vida. Foi criada em Caieiras e há 15 anos vive no centro de São Paulo. Na zona noroeste ou na Bela Vista, sempre que dá, prefere ir caminhando.
Sobre o blog
Dicas de lugares, roteiros, curiosidades sobre bairros, entrevistas com personagens da cidade, um pouquinho de arquitetura e mais experiências em São Paulo do ponto de vista de quem caminha.