Espaço público como passagem ou como permanência?
A gente se desloca diariamente de um ponto a outro. De casa até o trabalho; do trabalho até o lugar em que almoça; do prédio até a escola; da escola até o supermercado. No geral, a nossa lógica rotineira no espaço público é usá-lo apenas como passagem. Talvez daí a dificuldade em vários debates sobre a cidade que a gente tem hoje.
Se a rua de casa é só passagem, por que cuidar melhor dela? Se a pracinha perto do trabalho é lugar que a gente não frequenta, tanto faz saber as árvores que existem lá, quanto mais preservá-las. O curioso é que a noção de local compartilhado, algo que merece atenção e políticas públicas, parece surgir apenas quando algumas pessoas sentem que grupos minorizados estão usufruindo daquilo. Ela se torna problema quando é observada na lógica do patrimônio.
Um exemplo emblemático de como enxergar a cidade como local não apenas de passagem, mas de permanência, é polêmico. Em maio, a secretária de Desenvolvimento Social da prefeitura de Porto Alegre, Nádia Gerhard (MDB), declarou que a pessoa em condição de rua estaria incomodando os demais cidadãos no espaço público. "Aquele que deseja permanecer na rua não pode ser impeditivo para outras pessoas desfrutarem o espaço público", disse ela, emendando que a "Constituição garante o direito de 'ir e vir' e não o de 'ficar"'.
O presidente do Movimento Justiça e Direitos Humanos, Jair Krischke, rebateu: "Todo brasileiro tem o direito constitucional de ir, vir e permanecer. Também tem direito de carregar os seus pertences pessoais. No caso do morador de rua, aqueles sacos onde levam toda a sua vida".
Para além do debate sobre carências e questões complexas que levam alguém a viver na rua, não normalizando essa condição, a declaração da secretária parece se ancorar em um ponto de vista que nega o espaço público como local de permanência e desfrute de todos — seja de quem vive sob um teto, seja de quem no momento não. Um ponto de vista que não compreende esse espaço como tensionado, dado que a sociedade em que vivemos é desigual, e que está em permanente construção, ou seja, que não é perfeito nem tem como ser (se em aparência o é, é porque tem algo de muito errado aí). É por isso que ele deve mesmo ser foco de debates, conversas, diálogos que contemplem múltiplas vozes, a fim de torná-lo mais razoável para todos. Não dá para sumir com as tensões magicamente, sem mexer em estruturas. Dá para maquiar.
Andar a pé é um elemento importante nessa história porque sugere desvios nessas passagens, nos deslocamentos diários. Desvios esses que por vezes nos convidam a mais permanências, desfrutes menos condicionados. Andar a pé sai da lógica de pontos e entra na de linhas, como explicou em uma entrevista neste blog a artista Vânia Medeiros, referenciando o antropólogo Tim Ingold. Nessas linhas, talvez seja mais fácil ver quem está em situação de rua como cidadão, e a rua como um local que pode ter carro, cachorro, árvore, bicicleta, banco, parklet e, olha só, até ser humano.
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