Há espaço para festas tradicionais em uma cidade grande?
Nos últimos dias, ouvi: "Não me recordo de celebrar Cosme e Damião quando morava em São Paulo, mas quando fui pra Santos, nossa. Ali era uma festa enorme". Eu me lembro dessas festas quando criança, nos anos 1980 em uma cidade da região metropolitana com jeito de interior, mas fazia um bom tempo que não prestava atenção em como elas se desdobraram em bairros centrais, por exemplo.
Nesse ano, fiquei sabendo que na minha rua uma senhora mantém a tradição ofertando doces a todas as crianças daqui. Que há um caruru e samba de roda, além de outras celebrações, em uma casa de cultura baiana da região. Lembrei que a escola de samba do bairro também sempre fez sua festa. E vi que houve outra, em um campo de futebol embaixo de um viaduto onde os carros passam atravessando a cidade. Isso tudo não muito longe da avenida Paulista e do vale do Anhangabaú.
Os santos gêmeos que curavam sem cobrar por isso, considerados protetores das crianças, são celebrados no catolicismo, no candomblé e na umbanda. Mas, como disse um conhecido ao explicar a data, você pode ser ateu e participar da festa. O que está em jogo é a interação, a comunhão que se tece ali. Preparar saquinhos, conhecer a criançada vizinha, preparar comida. E do mais entram tradições comuns a cada lugar, bairro.
Não são festas muito divulgadas nos jornais, é verdade, mas celebrações informadas em conversas de calçada e grupos locais de WhatsApp. Curioso ver que uma pesquisa sobre a data nesse ano me entregou de cara a seguinte nota: Zeca Pagodinho sai às ruas para entregar doces de Cosme e Damião e faz sucesso na internet. O sucesso talvez venha dessa identificação que a maioria do povo tem com o evento, certa nostalgia, como já foi pensado um pouco aqui em um texto sobre festas juninas. Já o fato de a data virar notícia por meio de uma personalidade explica um pouco como a gente tem falado de cultura popular na imprensa.
Escrevendo esse texto, pensei em duas leituras recentes. O crítico britânico Raymond Williams (1921-1988) cunhou o termo cultura residual para falar de "experiências, significados e valores que não podem ser expressos por meio da cultura dominante" e que "são, todavida, vividos e praticados como resíduos — tanto sociais quanto culturais — de formações sociais anteriores" (em "Cultura e Materialismo", 1980). Esses resíduos podem persistir e ser fortes, o que simboliza a sua potência. Podem ainda, em partes, ser incorporados à cultura dominante que percebe a sua importância afetiva.
Já o geógrafo Alexandre Souza da Rocha (1965-2011), em um texto chamado "Ou é centro, ou não é centro. Ou é centro, ou é periferia", relaciona a ideia de centralidade à reunião de pessoas, distinguindo-a de um imaginário associado ao poder econômico. "As fogueiras de vizinhos durante as festas juninas são um bom exemplo de centralidade demandada pela festa, pois era a reunião dos vizinhos em torno do fogo, onde cada um trazia determinado tipo de comida ou bebida e viravam a noite comemorando São João ou qualquer outro santo. É uma centralidade espontânea, não é fixa, cada ano pode ser na casa de um vizinho diferente" (em "Atravessando a Geografia, Marx, Lefebvre e os Situacionistas", 2017).
Em tempos em que a rua ou inspira medo ou uma espécie de fetiche marqueteiro, são festejos bonitos de se observar. Simples em seu jeito complexo de entender o mundo.
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