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Cidade para se exercitar (ou levando a brincadeira a sério)

Adriana Terra

17/10/2019 12h00

Arte: MZK (mzk68.tumblr.com)

Uma das memórias mais vivas que a educadora física Thaís Moura tem daquilo que inspira sua trajetória, sua forma de trabalhar, está relacionada a uma tática que envolve lazer, cidade e relações comunitárias. Foi na segunda metade da década de 1980, quando era criança em Indaiatuba, interior de São Paulo, que viu seu pai usar partes de um avião teco-teco caído na região para construir a primeira bicicleta de seu irmão, e angariar uma turma para a transformação de um terreno vazio do bairro onde moravam em uma pista de bicicross. Começava ali a brincadeira.

"Juntou todo mundo com pá, carriola e eles fizeram um primeiro circuito", conta. Já praticando há um tempinho, essa turma quis participar de uma competição em São Paulo. A mãe de Thaís pediu um ônibus para a prefeitura da cidade, e lá foram eles. "Brincando eles ficaram bons: tudo que se poderia imaginar eles ganharam. A Caloi viu a performance e meu irmão ganhou patrocínio da marca. Então isso definitivamente é uma permanência na minha história: levar a sério a brincadeira", diz, enquanto conversamos embaixo de um pé de uva japonesa no lado externo da Biblioteca Mário de Andrade, na região central da cidade.

Fotos da construção do circuito ao prêmio, com Thaís ainda bebê. Crédito: Arquivo Pessoal

Localizar onde a conversa ocorre não é mero detalhe ilustrativo: o território, o contexto, tudo isso importa na atuação de Thaís. Ela é treinadora pessoal há catorze anos, após ter trabalhado em escolas — formada pela Pontifícia Universidade Católica (PUC) de Campinas, a educadora vê como fundamental tanto a base pedagógica quanto prática recebida ali. No seu método, a cidade tem relevância enorme: é muitas vezes ao ar livre, usando o que está disponível no entorno, que Thaís dá aulas.

"Se for transportar essa história da brincadeira levada a sério para agora: dar aula em uma praça, aqui. Por onde começar? O que fazer? O que você quer? A gente arruma como fazer. O padrão de uma academia de musculação, que se aproxima mais do protocolo de pesquisa do que do viver, tem a sua especificidade, um efeito reconhecido, mas você tem uma outra infinidade de coisas para fazer que tem um sentido", diz ela.

Nessa infinidade de possibilidades que a rua oferece, cabe um circuito de praças na região da República, por exemplo. Ou abdominais no parquinho do lado de casa ao som de Pepeu Gomes.

"Que exercício vai fazer efeito? Aquele que você gosta, porque o que você não gosta vai fazer de qualquer jeito, ou então a vida vai ficar muito miserável. E isso não é fazer só o que quer: entre fazer só o que quer e só o que não quer tem um espação", diz ela, dando exemplos de alunos como uma criança de nove anos que, após um dia mais complicado na escola, quis conversar um pouco olhando a lua em vez de se exercitar, ou uma senhora que busca atividades para que ela consiga ter mais autonomia e segurança ao brincar com a neta.

"É uma proximidade para poder negociar que não é dar mole, mas dar o espaço, a voz e a hora que todo mundo precisa ter. Isso de construir junto foi algo que a faculdade e a vida me deram. Se não tiver essa porosidade, não consigo fazer. Junta isso ao diagnóstico do ambiente e do que cada um tem à disposição", conta, explicando um pouco como trabalha, antes de a gente sair em uma pequena caminhada por ali.

A educadora andando de bike na infância. Foto: Arquivo Pessoal

Um projeto em aberto
Considerar a cidade toda como espaço para exercitar não elimina — pelo contrário, estimula — uma visão crítica de onde a gente vive: calçadas melhores, distribuição mais igualitária de parques e infraestrutura para a prática esportiva, menos desigualdade social, racial, de gênero. Na porosidade citada por Thaís, pensar a ideia de um ser urbano ativo envolve pensar a cidade como um todo. Quais as possibilidades, contextos e questões das diversas populações paulistanas envolvendo atividades físicas?

Todo lugar onde houver alguém que consiga estimular um programa com movimento e uma participação que não seja seletiva, mesmo que o entorno não ofereça tudo que poderia, é praticável. Pode sim, e acho ótimo, ser um mediador para ver a cidade de outro jeito: a cidade que não é só passagem, que não é só perigosa. Pela iniciativa das pessoas, o céu é o limite. O que se esperaria da política pública é que isso tudo já fosse adiantado e convidativo ao uso.

Uma pesquisa feita nesse ano pela Rede Nossa São Paulo em parceria com o Ibope acerca da prática de esportes na cidade apontou que o perfil de sedentários — tendo como referência definições de sedentarismo da Organização Mundial de Saúde (OMS) — é maior entre: mulheres (62)%; classe C (61%); população negra (51%); com renda familiar de até dois salários mínimos (50%); com Ensino Fundamental (39%); idosos (36%); moradores da zona leste (34%). Falta de tempo é o principal motivo (39%); seguido de problemas financeiros (24%); preguiça e ou desmotivação (20%); problemas de saúde (18%); ausência de infraestrutura próxima de casa ou do trabalho (13%); falta de afinidade com atividades físicas (12%); de companhia (9%); e idade (6%).

"Subir a escada rolante em vez da mecânica, por exemplo, nem sempre é escolha, mas condição de alguém já exausto. Se horizontalizado o espaço social, daí as pessoas podem fazer escolhas: quando há uma praça iluminada, emprego bem remunerado. Então eu saio cedo do trabalho e vou fazer meu exercício, pago a academia que eu quiser, faço uma alimentação saudável", diz Thaís, ajudando a refletir sobre os dados.

"Meu orientador [a educadora participa de um grupo de estudos na Faculdade de Medicina da USP, em preparação para o mestrado] diz que a saúde não é um estado, como fala a OMS, mas um projeto em aberto. Se você só considera a saúde um estado, e não o contexto em que a pessoa vive, está só entregando um peso para ela carregar", resume.

Para conhecer mais o trabalho da educadora: metodothaismoura.com.

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Sobre a autora

Adriana Terra é jornalista e gosta de escrever sobre a cidade e sobre cultura. É co-criadora da série “Pequenos Picos”, mapeamento afetivo de comércios de bairro da capital paulista, e mestranda em Estudos Culturais na EACH-USP, onde pesquisa lugares e modos de vida. Foi criada em Caieiras e há 15 anos vive no centro de São Paulo. Na zona noroeste ou na Bela Vista, sempre que dá, prefere ir caminhando.

Sobre o blog

Dicas de lugares, roteiros, curiosidades sobre bairros, entrevistas com personagens da cidade, um pouquinho de arquitetura e mais experiências em São Paulo do ponto de vista de quem caminha.

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