Topo

Histórico

Categorias

Blog SP a Pé

Baile é espaço social urbano e ataque também é simbólico, diz pesquisador

Adriana Terra

03/12/2019 17h38

Paraisópolis. Foto: Lalo de Almeida / Folhapress

"Eu entendo o baile funk como uma estrutura social mesmo. Porque tem o lance da roupa, do tênis, do corte de cabelo, do jeito de andar e de falar, do que você vai consumir, da forma como se porta, então ele é uma estrutura social muito complexa. E esse específico de Paraisópolis é uma estrutura mais avançada: está nas músicas, no imaginário. Qualquer adolescente que gosta de funk quer ir nesse baile. Quando eu fui na Bahia eu fui para Itapuã, ali foi o meu baile: está no meu imaginário criado pelas músicas do Dorival Caymmi. Então quando a polícia ataca esse local, além de tudo é uma violência simbólica", diz o pesquisador Kenyatta Mugo, professor de história e arte e músico instrumentista.

"Pessoa preta moradora de periferia", como se define, Kenyatta vem estudando o funk dentro da universidade desde 2012. Aluno da Escolas de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (EACH-USP), na mesma região em que vive — ele é criado e residente no Itaim Paulista –, o pesquisador tenta entender os "discursos de veto" ao funk paulista na mídia impressa. Na graduação em história, questionou por que esta manifestação cultural está constantemente "sob suspeita". O paulistano dá aulas também na Fundação Casa na periferia leste da cidade, no Encosta Norte.

Para Kenyatta, há uma série de discursos midiáticos que, nas entrelinhas, constrõem uma atmosfera social permissiva a ações policiais como a ocorrida no Baile da DZ7. No último fim de semana, uma operação da PM na festa resultou na morte de nove jovens periféricos (Bruno Gabriel dos Santos, 22; Denys Henrique Quirino da Silva, 16; Dennys Guilherme dos Santos Franca, 16; Eduardo Silva, 21; Gabriel Rogério de Moraes, 20; Gustavo Cruz Xavier, 14; Luara Victoria de Oliveira, 18; Marcos Paulo Oliveira dos Santos, 16; e Mateus dos Santos Costa, 23). Os atestados de óbito apontam asfixia e trauma na medula como "causa mortis" e a cena do crime foi alterada, informou o UOL nesta terça-feira (3). A versão inicial sustentada pela polícia era de que os jovens haviam morrido pisoteados ao fim do baile.

"Tem esse discurso de veto na imprensa e tem o modelo jurídico, construído por meio das leis, que é o projeto do Estado de combater os bailes funk. Isso eu chamo de veto explícito a partir do Legislativo. Para discutir o assunto, uso o conceito do intelectual camaronês Achille Mbembe de necropolítica, a política de morte que parte não só do Estado, mas de qualquer grupo que tenha armamento com a soberania de dizer quem vive e quem morre", diz ele.

"Esses discursos de veto, como eu chamo, têm a ver com território, que é o território periférico, e com raça. São espaços de maioria preta, e quando tem pessoas brancas são brancos pobres. Tem a questão racial e de classe", diz ele. "A primeira reportagem que eu vi sobre o caso, antes de aparecerem os registros em vídeo [com policiais agredindo jovens já rendidos], por exemplo, comprava a versão do Estado", diz, mencionando o racismo estrutural envolvido nesse processo.

O pesquisador Kenyatta Mugo

Enquanto os territórios são criminalizados por esses discursos, os sons reforçam uma identidade geográfica. "Se você observar as músicas do funk, elas mapeiam os lugares, os bailes: Marcone na zona norte, Helipa (Heliópolis), Pantanal (no Jardim Pantanal, na zona leste)", diz ele. "O baile do Pantanal fica encurralado, porque em uma das entradas dele em São Miguel Paulista você tem de passar por baixo da linha do trem, e quando a polícia vai, fecha as entradas com viaturas. Quando começa a atacar é aquilo: o jovem sai correndo pelas ruas perdido, porque às vezes nem conhece a comunidade", conta. Moradores de Paraisópolis revelam rotina de abuso policial, e uma busca no noticiário dos últimos dois anos mostra como ações violentas da PM foram frequentes (só em 2019, o Baile da DZ7 sofreu 45 ações de repressão).

Kenyatta entende os bailes como espaços sociais que podem reunir gente de lugares variados, pessoas de quebradas (e não só) diversas. De acordo com a União dos Moradores e Comércio de Paraisópolis, 80% do público do fluxo vem de fora do bairro. Muitas reportagens lembraram ainda que as periferias são pouco assistidas com ofertas de lazer e cultura — o Mapa da Desigualdade lançado neste ano pela ONG Rede Nossa São Paulo mostra que a Vila Andrade, onde fica Paraisópolis, não tem nenhuma sala de shows, por exemplo.

Para o pesquisador, há uma falta de compreensão da realidade periférica. "Falta dialogar com as pessoas no espaço em que elas moram. Quem faz isso, por incrível que pareça, é a igreja evangélica, o que desemboca em desastres como a eleição do Bolsonaro — e as pessoas também não entendem isso. Não existe solução imediata. A partir desses diálogos, pode-se criar espaços culturais. É muito difícil uma dessas favelas ter um campinho, e aí quando tem é um que parece do Real Madrid, e quem banca? É o traficante, e se alguém jogar uma coisa ali 'vai pro debate'. E aí sim, tem o lazer, o clube, o juiz, a trave perfeita. Já as igrejas têm os cultos, ensaios, festas", diz ele.

"A única coisa que o Estado manda pra esses territórios é a polícia ou a cobrança de imposto. Então quando a polícia vai, por mais bem intencionada que esteja, a população já vai hostilizar. Eu mesmo não fico à vontade se estiver vindo 2h da manhã de moto, minha locomoção atual, para casa e encontrar uma viatura: eu abro o capacete, deixo as duas mãos no guidão, porque qualquer reação pode ser entendida como um ataque."

Criar mais opções e acessos, no entanto, não reduz a importância da cultura do baile autogestionado, acredita o pesquisador. Essa reportagem fala sobre como os fluxos movimentam o lazer e a economia das quebradas, e também expõe as divergências entre moradores, importantes de serem debatidas fora de uma esfera repressora. No mesmo texto, uma frequentadora, Melissa Santana, diz que o baile "não é apenas uma forma de lazer para quem não possui condições", mas "uma forma de aceitação de onde você mora".

Paraisópolis, que já foi palco de novela global, é a segunda maior favela de São Paulo em termos habitacionais. Abriga um projeto chamado Circuito das Artes de Paraisópolis, voltado para o turismo e geração de renda local, e no último dia 23 de novembro recebeu o G10 das Favelasevento com foco no empreendedorismo e negócios de impacto social.

Nesta quarta e no próximo dia 14 estão marcados atos cobrando a responsabilização do Estado pelo massacre em Paraisópolis. Enquanto isso, o governador do Estado, João Doria, negou culpa da PM e disse que policiais "serão preservados".

 

Sobre a autora

Adriana Terra é jornalista e gosta de escrever sobre a cidade e sobre cultura. É co-criadora da série “Pequenos Picos”, mapeamento afetivo de comércios de bairro da capital paulista, e mestranda em Estudos Culturais na EACH-USP, onde pesquisa lugares e modos de vida. Foi criada em Caieiras e há 15 anos vive no centro de São Paulo. Na zona noroeste ou na Bela Vista, sempre que dá, prefere ir caminhando.

Sobre o blog

Dicas de lugares, roteiros, curiosidades sobre bairros, entrevistas com personagens da cidade, um pouquinho de arquitetura e mais experiências em São Paulo do ponto de vista de quem caminha.

Blog SP a Pé