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No Tatuapé, o triste fim de uma vila operária

Adriana Terra

02/09/2019 13h09

Parte do quarteirão da vila antes da demolição. Foto: Lucas Chiconi

Como de costume, o comerciante Ivan Vasconcelos chegou para trabalhar no último sábado às 9h em sua barbearia e bar no bairro do Tatuapé, um sobradinho de paredes em tom de rosa e marrom onde, nos últimos três anos e meio, ele construiu uma clientela fiel. Deu de cara com cavaletes fechando a via e operários demolindo a vizinhança.

O imóvel que Ivan aluga fica na Vila João Migliari, colocada abaixo neste fim de semana. Desde o início do ano, o conjunto de casas erguido entre as décadas de 1940 e 1950 para abrigar operários que trabalhavam nas fábricas da região estava sob risco iminente de sumir. Nos primeiros meses de 2019, foram demolidas 20 casas por conta de um empreendimento da construtora Porte, gigante do distrito, projeto do chamado Eixo Platina que visa verticalizar e adensar a área ao estilo da Berrini.

O ato despertou a atenção do morador da região Lucas Chiconi, que também é urbanista, ao perceber que se tratava da substituição de um espaço que não estava abandonado, muito menos deteriorado. "A vila nunca ficou vazia, e é exatamente esse uso que garantiu a ótima conservação. Temos um desconhecimento em relação ao patrimônio, às vezes a gente acha que porque uma coisa está conservada, ela é tombada", diz ele.

Tendo contribuído com a última revisão do Plano Diretor e do Zoneamento da cidade, Lucas se diz a favor de adensar os eixos "porque as pessoas precisam morar perto do metrô" [a vila fica a 500 metros da estação Carrão], mas o que ele vê ali é outra questão: os apartamentos que estão fazendo não parecem ser para as mesmas pessoas que já vivem no local, em termos de tamanhos e valores. No site do empreendimento, são anunciados imóveis a partir de 20 m² partindo de R$ 299 mil.

As casas da vila vindo abaixo no fim de semana. Foto: Clécio Bachini

Lucas então se mobilizou para organizar um movimento da sociedade civil na defesa da vila, que ele frequentava como consumidor dos serviços existentes ali. Além de moradia e da barbearia do Ivan, o local tinha clínica psiquiátrica, salão de beleza, lavanderia. Em maio, após uma ação simbólica de abraço no conjunto de casas e uma aula pública, ele protocolou um pedido de tombamento junto ao Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo, o Conpresp.

Não deu tempo: no caminho, havia um alvará de demolição existente desde fevereiro na subprefeitura da Mooca, desconhecido tanto do movimento quanto do Departamento do Patrimônio Histórico, que vem trabalhando com equipe enxuta. No sábado, imagens das 40 casas restantes vindo abaixo circulavam pelas redes sociais. O DPH disse que o "pedido estava em análise pela área técnica, que pretendia acolher a proposta de preservação". O caso será debatido na tarde desta segunda-feira (2) no Conpresp, em caráter extraordinário.

Tendo construído seu estabelecimento com a quantia que juntou ao longo de algumas décadas, a casa de Ivan foi a que restou intacta. Isso porque o barbeiro decidiu comprar briga: não sai dali sem ser indenizado. Conseguiu derrubar, na terça-feira passada, uma liminar de despejo. "O proprietário não nos deu opção de compra, falavam que iam modernizar. O dono me diz: 'você tá atrapalhando minha vida'. Investi R$ 200 mil no comércio, tudo o que eu tinha. Eu digo: 'sou eu que estou atrapalhando a sua vida?'", questiona.

As casas da vila vindo abaixo no fim de semana. Foto: Lucas Chiconi

Apesar de estar resistindo ali, Ivan entende que corre risco. Hoje pela manhã, começaram a ser demolidas as casas vizinhas a ele, o que pode afetar a estrutura de seu estabelecimento.

Procurado pelo blog, o proprietário referido, Bruno Lembi, não atendeu as ligações. A construtora Porte diz não ser a responsável pela ação. "As casas da rua Itapura não pertencem à Porte Engenharia e Urbanismo e não fazem parte do empreendimento Almagah 227 (futuro lançamento). Não temos informações sobre o que será feito no local", comunicou em nota.

Como a demolição desrespeitou normas de segurança, houve um embargo no sábado. Também não adiantou. "No último dia 31/8 a obra foi embargada de acordo com a Lei 16.642/17, pelo não isolamento da obra com alvenaria ou tapume. O embargo gerou multa no valor de R$ 40.000,00. Nesse domingo (1), mesmo com o embargo, houve a demolição irregular da obra, gerando multa, para o proprietário do terreno, por desrespeito ao embargo no valor de R$ 4.000,00. A multa é aplicada diariamente e, caso a obra continue, as medidas administrativas permanecerão sendo aplicadas", explicou a subprefeitura da Mooca.

"O valor da multa é baixo e isso já está incluso no lucro do empreendimento", acredita Lucas Chiconi. Para ele, trata-se de um processo de gentrificação. Lucas enxerga a necessidade de discutir patrimônio em comunhão com outras áreas, a fim de evitar casos como esse, em que o desconhecimento tanto da situação da vila quanto da importância de sua preservação para a cidade em termos de história e de direito urbanístico não seja sobreposto por outros interesses.

À esquerda, a vila ainda existente em imagem divulgada pelo empreendimento Almagah 227

Em artigo que co-assinou em março sobre o assunto, publicado no site do Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade (LabCidade) da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, disse acreditar que "as alternativas para preservação criadas recentemente na legislação urbanística são insuficientes para controlar o avanço predatório do mercado."

Isolado em sua barbearia, Ivan lamenta. "A burocracia faz com que a gente perca parte da nossa história. Aí vai tombar o quê?".

ATUALIZAÇÃO [às 21h20]: em reunião no Conpresp na tarde dessa segunda (2), acordou-se tombamento provisório das casas que restaram, cinco sobradinhos do conjunto original de 60 vizinhos ao de Ivan — embora alguns deles já estivessem sendo demolidos pela manhã. Os imóveis deverão ser preservados até a realização de um estudo pelo DPH e a avaliação do Conpresp, o que não costuma levar menos de um ano. O processo inclui ainda duas vilas com estilo semelhante e ligadas à mesma família, no Pari e Belém, informa a Agência Estado.

LEIA MAIS: Projeto sobre vilas operárias de SP discute afeto e patrimônio

Sobre a autora

Adriana Terra é jornalista e gosta de escrever sobre a cidade e sobre cultura. É co-criadora da série “Pequenos Picos”, mapeamento afetivo de comércios de bairro da capital paulista, e mestranda em Estudos Culturais na EACH-USP, onde pesquisa lugares e modos de vida. Foi criada em Caieiras e há 15 anos vive no centro de São Paulo. Na zona noroeste ou na Bela Vista, sempre que dá, prefere ir caminhando.

Sobre o blog

Dicas de lugares, roteiros, curiosidades sobre bairros, entrevistas com personagens da cidade, um pouquinho de arquitetura e mais experiências em São Paulo do ponto de vista de quem caminha.

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